Falar de automutilação é quase como falar de sexo e drogas na adolescência: parece muito arriscado. É necessário coragem e abertura para entrar nesses temas com adolescentes cheios de curiosidade e impulsos. A impulsividade e a liberdade para correr riscos desconhecidos é parte desse período da vida em que se tem pressa, muita pressa de viver. Ambientes seguros e a presença de adultos que transmitam estabilidade e serenidade é fundamental para que essa liberdade seja vivida de forma saudável.

Mas adultos também tem suas inseguranças e impulsos! A verdade é que, enquanto pais, acompanhamos o desenvolvimento de nossos filhos torcendo para não precisarmos entrar muito a fundo nesses temas difíceis – ficamos entre a vontade de ajudar, de apoiar, e o receio de incentivar um comportamento precoce ou disfuncional, despertando a curiosidade para os comportamentos de risco… A responsabilidade de ser mãe e pai ou responsável por um/a adolescente não é leve. A maioria de nós chega na vida adulta aliviado por ter ‘sobrevivido’ as crises e aos riscos da própria adolescência. E, às vezes, tememos que nossos filhos não sobrevivam ou saiam com mais cicatrizes do que achamos suportável…
Então, quando os pais chegam na consulta desesperados, extremamente confusos, com raiva dos filhos e de si mesmos ou deprimidos, porque descobriram que seus filhos se machucaram propositalmente, geralmente com cortes autoinfligidos, eu não me surpreendo. Em geral, a primeira reação deles é punir a automutilação, no impulso de mostrar imediatamente como discordam desse comportamento. E geralmente a punição implica em restrição da liberdade e vem carregada de esquemas interpretativos preciptados, como por exemplo acusar o adolescente de estar se cortando para ‘chamar a atenção’ quando a intenção dele era esconder a dor emocional com uma estratégia solitária e mal adaptada. Palavras duras, críticas severas, carregadas de decepção, vem do impulso de estancar a dor do filho e interromper o comportamento autoagressivo. E o impulso é super válido e compreensível, mas a reação a ele acaba sendo contraproducente. A minha primeira resposta, depois de validar a preocupação intensa dos pais, é de recomendar não punir um comportamento que já é autopunitivo e já vem carregado de culpa e incompreensão.
Poucas pessoas entendem do que se trata a automutilação, porque pouco se fala dela. E quando se fala, rapidamente a associam ao suicídio e a loucura. Por isso, o desespero. Mas, a automutilação, embora muito associada a problemas de humor e a sentimentos muito difíceis de elaborar, não se equivale à tentativa de suicídio. Na verdade, ela é, muitas vezes, uma estratégia para sentir-se ‘vivo’ ou reverter estados excessivos de ansiedade, vazio e depressão que todo mundo vive em algum grau e em algum momento da vida. Como terapeuta experiente nesse tema, concordo com as campanhas de conscientização que encontrei aqui no Canada que afirmam que as pessoas que recorrem a esse tipo de comportamento não o fazem com intenção de morrer. E essa é a primeira informação fundamental que você precisa ter. Pode parecer contraditório, mas uma parte considerável do impulso autolesivo é motivada pela vontade de viver. E essa vontade precisa ser validada. É partindo dessa validação que conseguimos substituir uma estratégia autodestrutiva por uma estratégia saudável.
Precisamos reconhecer que a agressividade é uma energia vital, com a qual aprendemos a expandir os limites de nossos corpos, desde bebês. Sem resistência e teste aos limites do corpo, dificilmente aprendemos coisas novas e nos sentimos capazes. É natural e revigorante desafiar esses limites. Então, a automutilação pode começar como uma experiência excitante, uma forma de desafiar a tolerância à dor. É um comportamento de risco intencionalmente controlado. Começa como resposta rápida e segura a essa necessidade de expansão porque está sob o controle da própria vítima. E ao mesmo tempo, pode responder a sentimentos de insatisfação ou reprovação sobre si. Ou seja, no impulso de arriscar-se, desafiar limites para sentir-se viva, a pessoa dirige a agressividade a si mesma. Mas não é saudável levar a agressividade ao extremo, e usar comportamentos repetitivos e compulsivos no processo. Toda compulsão, no fim das contas, é altamente limitante, apesar de começar como algo aparentemente libertador. E, então, vem mais culpa e a solidão. E a resposta que antes parecia sob controle passa a ser insuficiente e a gerar uma busca repetitiva daquela excitação, com cortes mais profundos ou práticas mais lesivas. E as marcas físicas passam a ser mais visíveis e a expor a dor emocional ao invés de escondê-la.
Então, para quebrar esse ciclo, a melhor forma de reagir ao se deparar com sinais de automutilação em adolescentes é buscar compreender a motivação e a magnitude do comportamento. Uma forma inadaptada de lidar com a situação pode aumentar o risco de um transtorno de personalidade, como o Transtorno de Personalidade Borderline, se instalar. Sem julgamentos preciptados. Trate do tema no contexto da saúde mental e não de questões de caráter. Evite reagir nos extremos, com pensamentos catastróficos e pessimistas. Mas, também não ignore a dor emocional que está motivando essa prática.
Provavelmente, esse adolescente vai precisar de ajuda para entender o que está sentindo e para desenvolver outras estratégias de resposta a suas necessidades emocionais. A parceria de adultos compreensivos, inclusive de terapeutas, psicólogas e psiquiatras pode ser fundamental. Procure ajuda. Não espere a erradicação imediata do comportamento e dos sentimentos associados. Tenha paciência. Ofereça opções diversificadas de manejo do estresse, como esportes, práticas meditativas, grupos de psicoeducação em regulação emocional; evite punições excessivas, porque elas pode provocar mais ansiedade, culpa e impulsividade. Ao mesmo tempo, cuide do ambiente para que ele não sirva de gatilho para os impulsos autodestrutivos; por exemplo, evitando deixar ao alcance bebida alcoólica, remédios, objetos cortantes e incendiários. E, acredite na capacidade de transformação e reabilitação de seu/sua filho/a.