O Transtorno de Personalidade Borderline (TPB), assim como todo transtorno de personalidade, pode ser melhor compreendido por uma explicação biossocial, que inclui fatores genéticos e sociais do desenvolvimento psicológico. Podemos dizer que o TPB é uma evolução patológica de um perfil de personalidade que inclui maior sensibilidade emocional e maior vulnerabilidade à traumas psicológicos ao longo da infância e adolescência. Da minha perspectiva, nem todas as pessoas com características limítrofes da personalidade desenvolvem o transtorno. Mas é importante reconhecer que elas apresentam um risco mais elevado de desenvolvê-lo.

O TPB afeta profundamente a organização dos sentidos e a regulação emocional, produzindo experiências de vazio profundo, de “não existir”, às vezes de “estar fora do próprio corpo”, com pensamentos acelerados e muita dificuldade de identificar e nomear os sentimentos. Esse sintomas aparecem geralmente diante de gatilhos que podem ser diferentes para cada pessoa mas que em geral são fontes de forte invalidação.
Na infância e na adolescência, aquela vulnerabilidade genética se expressa por respostas desproporcionais à eventos desagradáveis ou altamente excitantes. Crises de intensa desregulação emocional podem até provocar comportamentos de autolesão e de agressividade contra os outros. A princípio esses comportamentos são respostas impulsivas à toda essa sobrecarga emocional e sensorial, e podem se tornar crônicos. Quando os cuidadores não são capazes de oferecer validação e ensinar estratégias de expressão emocional mais saudáveis, a culpa e o autojulgamento se intensificam, provocando mais experiências disruptivas. O conjunto dessas variáveis, repetindo-se de forma sistemática, levam o transtorno a se instalar no início da vida adulta com um aumento considerável do risco de suicídio.
Fundamentalmente, o TPB afeta o contorno subjetivo que a maioria das pessoas parece desenvolver naturalmente. Isso ocorre porque são as sensações físicas e suas correspondentes emocionais que contribuem para a integração da experiência humana de um “Eu” relativamente estável no tempo e no espaço. Então os limites nas relações com familiares, amigos e parceiros sexuais também se tornam instáveis e frágeis. Há um alto risco dessas pessoas se engajarem em relacionamentos destrutivos, às vezes se tornando vítimas de relações abusivas, às vezes sendo abusivas com seus parceiros. O abuso de substâncias psicoativas pode acabar se tornando uma resposta autodestrutiva para a dor emocional causada pelo transtorno.
Mas a personalidade limítrofe ou borderline também pode ser vista por suas potencialidades. Em geral, crianças e adolescentes com traços dessa personalidade são mais sensíveis emocionalmente, incluindo maior sensibilidade sensorial e estética, então são muito criativos e empáticos. São capazes de oferecer pontos de vista inovadores. Muitas vezes, na adolescência, tem uma sexualidade mais livre e fluida, são menos influenciáveis por preconceitos e podem ser amigos leais, capazes de compreender aquilo que poucos compreendem. Mas, por não se limitarem a certos tabus sociais, podem ser mais submetidos a constante invalidação por adultos e colegas, e podem acabar expressando desconexão ou indiferença como autodefesa.
Não é coincidência que na vida adulta, muitos indivíduos com TPB se dedicam a carreiras criativas, como artes, gastronomia, música, pesquisa, e se destacam pelo que fazem. A artista brasileira Lygia Clark ficou conhecida pelas intervenções artísticas que criou com pessoas consideradas border nos anos 1970 e 1980. As experências dessas pessoas com dispositivos artísticos inspirou a artista a criar objetos e performances interativas que potencializam as experiências estéticas de quem participa.
A cientista e psicóloga Marsha Linehan desenvolveu o tratamento mais eficaz para o transtorno com o qual foi diagnosticada no início da vida adulta, e hoje é reconhecida internacionalmente. Em sua recente autobiografia, ela conta como era conhecida por ser uma adolescente autêntica, com uma busca peculiar pelo desenvolvimento espiritual e ao mesmo tempo um comportamento atípico para as meninas de sua época e contexto social. As constantes invalidações que ela sofreu por parte de seus pais e instituições psiquiátricas levou-a a experimentar os piores sintomas do transtorno. Mas, ao encontrar recursos para sobreviver às crises, voltou a estudar, se encontrou no budismo zen, e se dedicou intensamente a pesquisar e assistir pessoas parasuicídas.
Não existe remédio para TPB. O tratamento mais eficaz, baseado em evidências científicas é a psicoterapia com abordagem comportamental-dialética desenvolvida por Linehan, em inglês Dialectical Behavior Therapy (DBT). Essa terapia se baseia em aceitação e mudança como forças dialéticas. Na minha experiência como psicoterapeuta de adolescentes em risco de TPB e jovens com diagnóstico de TPB, tenho tido a felicidade de ver excelentes resultados! Formada em DBT e com um olhar culturalmente sensível, trabalho com o tripé: acolhimento, aceitação e transformação. A participação da família buscando mudar o padrão de comunicação invalidante também ajuda muito. O DSM V sugere que além de psicoterapia, o engajamento da/o paciente numa atividade produtiva, a atividade física e a relação com animais de suporte emocional também contribuem para a total recuperação.
A grande maioria das pessoas com TPB que recebe tratamento no início da vida adulta tem uma melhora imediata na qualidade de vida e entra em remissão total depois em cerca de 10 anos do diagnóstico. E essa remissão não significa supressão das potencialidades da personalidade. Pelo contrário, aceitar e validar essas potencialidades é parte do tratamento. E por isso precisamos de sociedades mais acolhedoras às diferentes formas de expressão subjetiva. A Personalidade Borderline nos faz pensar na plasticidade do desenvolvimento humano. A pessoa humana é capaz de sentir as sensações mais desorganizadoras, mas, também é capaz das experiências mais transformadoras de transcendência, de amor profundo, cumplicidade e conexão plena.
Referência:
Linehan, Marsha. Building a life worth living: a memoir. 2020